quarta-feira, 30 de julho de 2008

De volta para a nossa terra!

Seu Gugu,

Sou uma jovem estudante de Letras. Estudo Letras para ser professora e poder mudar o nosso Brasil, mas fui traída pelos meus sonhos de aventura juvenis. Moro no Sul, terra de gente boa, trabalhadeira e respeitadora e que muito sofre com o frio, a falta de ginga, suingue e cerveja. Como toda sulista, sempre sonhei com um pouquinho de calor, alegria e, por que não?, um pouquinho de safadeza. Foi aí que embarquei na viagem sem volta que mudaria para sempre a minha vida. Soube de um encontro de estudantes em Belém do Pará e, sem muito pensar, entrei naquele ônibus que por dias seria o nosso lar e o início de nossa perdição. Não conseguia ver nada: apenas me imaginava me divertindo com Joelma, Ximbinha, ouvindo todos aqueles grandes sucessos que outrora conheci por meio do seu programa e voando além do infinito na terra de Nosso Senhor. Mas a decadência moral começou logo no início da nossa viagem: um rapazinho simpático e enganador nos seduzia com seus ditos hereges em latim, alemão e japonês e aos poucos todos foram sendo atraídos para as chamas do inferno. Conforme aumentava o calor, mais difícil ficava pensar com clareza. A sede, a fome, o cansaço, o calor escaldante, a falta de sexo e de oração nos trazia sofrimento intenso e as tentações foram se inserindo em nosso cotidiano sem que eu pudesse me dar conta. O fundo do poço foi quando nos viciamos na pior das drogas: a Ypióca nos transtornava, tirava as pessoas de si e, quando dei por mim, todos bebiam, fumavam cigarros e ervas, se drogavam, blasfemavam contra o Senhor Pai Eterno e faziam sexo indiscriminadamente: homens, mulheres, velhinhos, crianças, animais e leguminosas... Nada escapava.

Hoje, cerca de dez dias depois do início do sonho, o sonho virou pesadelo: tenho os pés sujos e calejados, as tiras das havaianas já se soltaram, tenho vermes, unhas encardidas, picadas de inseto, ressaca física e moral, sono, fome, desnutrição, desidratação, muito calor e só sei falar cantando. Descobri que o mundo de glamour da televisão não passa de aparências e ilusão: conheci muitas celebridades nacionais - como Vanessa da Mata, Ed Motta e Gabriel o Pensador - e internacionais - como Lenny Kravitz. Todos tão perdidos e sem brilho quanto eu. Meus cabelos já não balançam mais com o vento, perdi meu dinheiro, não tenho mais uma única calcinha limpa e o protetor íntimo também já acabou. A Ypióca, o cigarro, a droga, o dinheiro: tudo se foi. Entrei para a marginalidade dando golpes em postos de beira de estrada para poder comer e consigo um pouquinho de bebida, droga e cigarro em troca do meu próprio corpo, que, depois de tanto sofrimento e da depilação vencida, está valendo cada vez menos. Perdi meu orgulho, minha ideologia, minha coragem, minha honestidade, meu amor próprio, minha integridade física e moral, minha virgindade e minha dignidade. Estou no fundo do poço, mas quero resgatar meus valores, e o primeiro passo, Seu Gugu, acho que é ser mandada de volta para minha terra. Me ajude, Seu Gugu!

Criado por Juli Passos.

http://www.orkut.com.br/Community.aspx?cmm=59055401

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Passagem do Ano

O último dia do ano
Não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
E novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida
Beijarás bocas, rasgarás papéis,

Farás viagens e tantas celebrações
De aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com
sinfonia e coral,
Que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
Os irreparáveis uivos
Do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
Não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
Onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
Uma mulher e seu pé,
Um corpo e sua memória,
Um olho e seu brilho,
Uma voz e seu eco.
E quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa, já se expirou, outras espreitam a morte,
Mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
E de copo na mão
Esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
O recurso da bola colorida,
O recurso de Kant e da poesia,
Todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
Lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

(Carlos Drummond de Andrade)

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Eu...

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho,e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ...

Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!

(Florbela Espanca)

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Cheiro de Infância

Era uma casa nova, uma rua nova e, principalmente, eram vizinhos novos. Uma construção baixa, no alto de uma rua feia com alguns terrenos vazios, árvores, gramados, crianças brincando fora das casas. Mudei-me para um bairro retirado da cidade. Eu, que estava acostumada a viver no bairro central, fiquei admirada com a alegria das crianças que pela faixa de paralelepípedo corriam. Com meus calmos cinco anos, sentei-me ao meio-fio e desejei ter uma tangerina para comer.

Aproximou-se de mim um rapaz magro de cabelos pretos com aproximadamente dez anos, perguntou-me como eu me chamava e me convidou para brincar. Falei-lhe o meu nome e respondi que permaneceria ali, sentada. Devo ter pronunciado mais umas duas palavras, porém me recordo somente de ter abaixado a cabeça, ter brincado com as pedrinhas do chão e ao erguer novamente o olhar, na minha frente com o rapaz estarem duas meninas, uma um pouco mais velha que ele e a outra talvez da minha idade. Sorriam alegremente e me observavam como se fosse um brinquedo na vitrine de alguma loja. O rapaz, que se apresentou como Pedro, deu uma gargalhada e me disse que as duas moças eram suas irmãs, Bruna e Ana.

As duas crianças mais velhas sentaram-se ao meu lado e questionaram se eu era a nova moradora da casa da esquina. Sinalizei que sim com a cabeça e, olhando para o chão, dei um sorriso com o canto da boca para os meus vizinhos da frente. Algumas outras crianças saíram das casas e logo percebi que era a hora de todas brincarem. Levantei-me para brincar com elas, não sem antes resistir um pouco. Começavam aí três anos de amizade entre mim e meus vizinhos, três anos que hoje me parecem muito mais.

Jogar bola, andar de bicicleta, brincar com os cachorros, com carrinhos, com bonecas, várias eram as atividades que preenchiam as minhas tardes, mas confesso que a mais prazerosa de todas para mim era subir no pé de goiaba que havia no final da rua sem saída. Do alto da árvore eu conseguia olhar toda a rua, o topo de todas as casas. No balanço pendurado naquela árvore eu sentia a liberdade bater em meu rosto, o vento tinha um sabor especial, assim como a goiaba que eu colhia e nem lavava, apenas limpava na camiseta já não muito limpa.

As tardes de sol após as manhãs de chuva eram por mim adoradas. A terra – para fúria da minha mãe – ficava molhada, o mato ganhava um cheiro mais atraente e lá ia eu, embrenhar-me pelo terreno baldio, subir na goiabeira e depois pular na terra enlameada. Voltava para casa coberta de barro, descia o barranco dos fundos do terreno da minha casa sobre um pedaço de papelão até não ter mais força para subir correndo. Após gastar todas as energias, abria a mangueira e fazia a festa: era água espirrando por todo o jardim, fazia de conta que era um chafariz ou uma chuva de verão.

Nos finais de semana eu jogava bola com meu pai no campinho de futebol que montávamos no enorme gramado atrás da casa. Foi meu pai que me ensinou a jogar futebol e me passou o gosto pelo esporte; foi com ele que aprendi a gostar de assistir aos jogos na televisão e a franzir o nariz quando um jogador do meu time perde a bola ou erra um gol. A minha mãe me ensinou a deixar tudo sempre arrumado, costume que de criança eu reprovava, mas hoje percebo que sou igual. Eu gosto de ser igual.

Entre muitas histórias boas e algumas não tão agradáveis, resta-me uma certeza: os três anos naquele bairro – e os demais da minha infância – foram bons e são freqüentemente lembrados principalmente quando o inverno chega e, ao comer uma tangerina, sinto o cheiro da infância e desejo ter um meio-fio para me sentar.

Talita Ewald Wuerges

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Cântico Negro

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

(José Régio, 1955)